Universos que se espelham nas artes. Por Jaider Esbell


 Universos que se espelham nas artes - Jaider Esbell

A ideia que temos hoje de teatro é de um lugar onde talvez nós, os atores, corpos coletivos indígenas, estejamos marcando como um lugar de troca, de devolução e especialmente de revolução. Um ato contínuo onde o rito é o grito que desperta ambivalentes estruturas de composição de mundos outros que não a tragédia, o drama e a extinção.

A simples possibilidade de encenar as realidades ecológicas urgentes tendo os sujeitos indígenas como protagonistas e não mais como fonte de inspiração pode, talvez, vir a dar em uma espécie de via de apresentação. Teria o teatro palco para uma autoapresentação (dos atores coletivos indígenas e suas questões)? Eu digo isso pois sinto que o teatro de que precisamos é o teatro que vamos construir, ou até mesmo adaptar, quando não forjá-lo para as nossas prioridades e urgências.

Penso que não apenas o Teatro, mas todas as áreas artísticas deveriam, a rigor, pautar suas pesquisas, montagens e exibições tendo a urgência ecológica como base. O que eu quero dizer com urgência ecológica? Quero dizer que as populações autóctones ao redor do mundo que ainda mantêm a conexão essencial com o território ancestral e com a estrutura nuclear de suas cosmologias são a vanguarda se pensamos rumar para outro lugar que não o colapso. São esses modos de vida e de organização social que têm legitimidade quando queremos questionar e até negar um fluxo inevitável, qual seja a ideia de que tudo, a priori, venha a dar na modernidade ou no desenvolvimento.

A modernidade para nós indígenas continua sendo uma armadilha, um fascínio, uma condição a se chegar. A colonização plantou esses desejos. Modernidade, conforto e futuro. Mas a urgência ecológica também nos faz encontrar o caminho para que permaneçamos íntegros, fiéis à nossa natureza de completude quando ouvimos de nossos mestres pensadores que: o futuro é ancestral.

Essa de fato é uma questão que nos desafia. Como acolher com utilidade uma vaga encenação, é algo que estamos considerando avaliar. Essa utilidade estaria no campo pedagógico de repensar fluxos de mundo que se atravessam. O teatro pode nos interessar desde que ele nos contemple enquanto realidades escalares que são comuns e também distintas. O teatro é um e os povos indígenas vários, como contemplar sem generalidades?

Parece-me, já que não tenho pretensão alguma de emitir uma análise crítica e até “científica”, que as aproximações venham se configurar por meio de outras alianças. Tais alianças passam a exigir ainda mais articulações nas abordagens. O mundo tal qual sabíamos há dois anos guinou radicalmente e a virtualidade das ações que hora virou regra, apontam para uma relação ainda mais delicada que esta que vinha sendo construída ainda sem dispor de uma solidez. Quantas publicações temos sobre os assuntos com autorias indígenas?

Existem grupos ou companhias de teatro que contemplam atrizes e atores indígenas em papéis maiores e também em cargos de direção? Existem alguns indígenas que estudaram e utilizam técnicas de teatro em suas performances. Posso citar, por exemplo, o pajé e teatrólogo Bu’ú Kennedy, membro do povo Yepá Mashã, do Alto Rio Negro, que desenvolveu com o professor Luiz Davi, da Universidade Estadual do Amazonas, algumas atividades conjuntas no teatro. Certamente temos outros e outras autores e autoras indígenas nessa publicação que falam, narram e performam suas próprias relações com o universo teatral.

Considerando alguns apontamentos levantados acima, como interpretar e bem “assimilar” as proposições que o teatro pode nos oferecer, pois não parece ainda que a ideia de teatro esteja muito próxima de um lugar distante da realidade? Há algum risco de a plateia, ao invés de adentrar em nossas urgências e somar conosco na luta antiecocida, perceber tudo como um espetáculo continuado de distanciamento de realidades. Pode a realidade representar-se em um lugar onde o que se espera é a fantasia?

Não nos custa lembrar que estamos e me parece que ainda estaremos, por muito tempo, em guerra. A colonização abriu e vem abrindo irreversíveis clareiras e nas maiores, as metrópoles, por incrível que pareça é onde podemos oferecer as sementes para a construção de uma outra perspectiva de contracenagem. Ora, faz mais de quinhentos anos que as cidades nos negam e nos alijem de uma possibilidade de participação mínima.

Estamos sempre nas periferias tratados como minorias e não fica apenas nisso, somos personas não gratas na urbanidade, pois destoamos da harmonia e não temos serventia alguma neste contexto por não corresponder exatamente com a dinâmica da máquina- cidade.

Então me parece que as seguidas tentativas que os povos indígenas investem em buscar fazer parte da cena urbana seja, de forma muito legítima, uma arte muito sofisticada de resistir a todo o esforço de apagamento que a malha, o aparelho urbano imprime sobre nossos corpos e sobre nossas memórias.

Com quem contracenamos hoje? Com a invisibilidade, com o desconhecimento e com a falta de uma expectativa de que é possível uma coexistência baseada não mais na complementação, ou no reforço e perpetuação de estruturas extrativistas, mas de efeito amplo, alcançando uma unidade de sentido, uma fusão de tecnologias e uma clareza de das prioridades, a ecologia.

Como um não-teórico eu não posso ir muito além nas questões sem que recorra às minhas poucas, mas próprias experiências com o teatro. Eu sou do povo Makuxi, somos transnacionais e isso aumenta o rigor da violência sobre nós, pois desafiamos com os nossos deslocamentos as fronteiras oficiais.

Em Roraima, no tempo da construção de novas alianças para a nossa luta, nossos líderes puderam incrementar os argumentos para a retomada de nosso território ancestral e atual nesse campo das artes. Como? O teatro foi umas das técnicas que nos alcançou e que deu certo. Como? Por menos provável que pareça, o teatro foi apresentado para nossa escola de luta por um padre italiano que encontrou nessa arte uma forma de compor melhorar a dramatização da campanha de nossa defesa no exterior.

Ele dirigiu comunidades inteiras para que encenassem como eram as violentas investidas dos soldados, dos garimpeiros, dos fazendeiros sobre nossas famílias quando queriam, a todo custo, que nos mudássemos para outro país, a vizinha Guiana, deixando livres nossas terras para suas posses e usufrutos exclusivos.

Com os “espetáculos” montados, parte dos membros da comunidade representavam os invasores, a outra parte representava os humilhados. Em seguida, o mesmo padre, Padre Jorge, filmou a encenação e mostrou ao redor do mundo, conseguindo mais aliados para a nossa luta.

Foram experiências práticas da utilização de técnicas de teatro envolvendo toda a comunidade indígena. O contexto era de guerra colonial declarada. À época, foi denunciado fora do Brasil, um Brasil que não se percebeu. A metrópole brasileira nesse caso não teria essa informação se eu não a trouxesse aqui enquanto um artista ativista que descende dessas famílias, que sofreram episódios seguidos das mais nefastas violências, violações e genocídio.

No fim posso dizer que esse teatro funcionou para nós. Se hoje temos nosso território demarcado, parte das denúncias foram feitas por meio do teatro. Foram ações contra coloniais realizadas na última década da ditadura militar, anos 60/70, e eu ainda nem havia nascido.

No meu caso em específico, me vejo pisando em um palco de teatro já na cidade de São Paulo, em 2018, em uma ocasião muito distinta. Já fazia mais de cem anos que tinham tomado as histórias do meu avô Makunaimî e muitas outras lá da nossa floresta, e espalhado tais narrativas como histórias fantásticas de um mundo sucedido.

Assim, mais ou menos por estes caminhos, dos distanciamentos ou deslocamentos dessas cosmologias de suas origens, foram paulatinamente transformando nosso “sagrado” em algo não mais fantástico, mas espetaculável.

Se as narrativas não estão mais em conexão com suas origens, se conseguiu apartar o povo de seus cosmos sendo levado apenas o mito e não as gentes para as bibliotecas e teorias etno-antropológicas urbanas, estava “limpa” a lenda, o mito e o fantástico para livre usurpação.

 

Nesse pequeno movimento que tento traçar acima é que me deparo num palco de teatro a convite da colega artista Yara Rennó para encenar o meu próprio avó re-caracterizado; assim representei o papel de meu próprio avô cósmico, o Makunaíma, no espetáculo “Makunaíma Ópera Tupi”. O que isso pode significar?

Para mim, foi uma chance de dizer que por mais de cem anos nossa família foi violentada. Tomaram nosso avô maior e o levaram para muito longe de nós. E eis que depois de cem anos, por meio do convite de uma artista que performa há mais de vinte anos aspectos de nossa cosmologia, pude eu mesmo ser meu avô Makunaima e não mais um ator/artista que não seja diretamente da nossa família.

Em outra ocasião, eu pude atuar em uma peça de teatro na França, na cidade de Grenoble, em 2019, a convite da atriz e diretora Rita Natálio. Essas ocasiões são distintas, mas ambas trazem muito para a construção dessa ideia de possibilidade que seria o teatro e os povos indígenas.

Como qualquer aproximação aparentemente improvável, o teatro como uma manifestação artística também chega para os povos originários no combo do pacote colonial. É nesta mesma arte que podemos vislumbrar tecer outras narrativas que não a única via, a do colonizador quinhentista ou a dos seus descendentes contemporâneos, os teatrólogos atuais.

Na França, a peça de Natálio discorria sobre o antropoceno. Era o fim dos mundos em questão, ao menos o fracasso humano que se desnudava. Mas como eu poderia estar lá e não poder denunciar o que para nós fazia mais sentido? O antropoceno imperava lá, estávamos na Europa, mas eu estava ocupado com o meu mundo que ainda é viável, mas está minado de garimpo ilegal e foi o que fiz, denunciar.

O teatro anunciava o fim mais intenso da parte maior da humanidade, a dominante, mas para a outra parte, esta de onde eu venho, embora pequena, o antropoceno ainda não cabia. São exatamente as populações originárias que contrapõem o antropoceno, pois embora violadas severamente em suas essências, a vida para nós ainda se deixa ver no horizonte.


AUTOR

Jaider Esbell, é artista, escritor e produtor cultural indígena da etnia Makuxi. Em 2013 começa a pintar e, desde então, são várias exposições coletivas, viagens, itinerâncias, publicações de livros, artigos. O artista colabora com obras e testemunhos de vivências coletivas com a arte indígena contemporânea realizadas em Roraima, fruto de articulação entre artistas, artesãos, lideranças, comunidades e a sociedade em geral em torno do tema.


Obra “Dança das Raízes” de Aislan Pankararu

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